sexta-feira, 20 de junho de 2008

A Vida sem as Duas Pernas

©Soaroir - Junho 11/08

imagem: roussard/Georges Braque

















Depois da feijoada de quarta-feira, de volta para o trabalho, ia meio sonolenta, pesada, pensando no que teria que fazer para compensar toda aquela extravagância calórica e até sonhava com a aposentadoria quando foi abordada. – “Moça, compra o meu livro?” Virou-se e, sentada no chão, com uma tábua sobre os joelhos estava uma moça. - "Compra meu livro, é pra ajudar a comprar a cadeira de rodas pra melhor eu enfrentar as necessidades diárias dessa cidade.” Ela parou e recebeu um livreto artesanal em cuja capa estampava: "Minha vida sem as duas pernas". “Que droga”, pensou “e eu aqui preocupada com as minhas calorias, minha aposentadoria...” Entre o olhar, raciocínio e o falar pareceu um longo tempo diante da destreza da aleijada: "Na terra me arrasto, mas nas nuvens eu deslizo.” Aquilo foi o bastante para fazer aquela transeunte meio assim – assim – acomodada, parar para ouvir aquela história.

Ninguém rejeita uma caipirinha antes de uma boa feijoada, mesmo nos dias úteis, e ela não era diferente – afinal, ninguém é de ferro...! Já que aquela moleza a estava atrasando para bater o ponto de entrada, mais um gole não iria embriagar muito mais, e de mente vazia de qualquer preocupação existencial, como num sonho ela se agachou para ouvir a introdução de mais uma história arquivada nos arquivos mortos das esquinas da Avenida Paulista.

- E depois da cadeira de rodas, o que você pretende fazer?
- Tenho sonhos, assim como a senhora.
- Como você sabe que eu sonho?
- Todo mundo sonha!
- Quais são os seus?
- Ah, os meus são grandiosos, e como são! Me utilizo deles para me transportar para os horizontes de minha imaginação onde subo as nuvens e não sou deficiente, deslizo nas asas de meus sonhos para esquecer que na terra, preciso me arrastar para chegar a algum lugar. Como a senhora pode ver, não tenho as duas pernas, que me levem até aos castelos aos quais preciso subir cada degrau, um a um, para conseguir existir.
- “Ainda bem que me arrasto por aqui, nas nuvens eu não conseguiria existir” pensou a transeunte que comprou mais uma estória e partiu a pé.